O Perigo Mora ao Lado
Na América Latina, 12 nações possuem campos minados. Mas são os Colombianos que mais têm de prestar atenção por onde andam: o país é, no mundo, o que mais apresenta novas vítimas dessas covardes armadilhas explosivas
Jhon Ferney e família viviam tranqüilamente da agricultura de subsistência numa pequena propriedade no meio da floresta tropical. Até que, sem maiores avisos, guerrilheiros invadiram a região exigindo que os moradores aderissem ao movimento. Sem alternativa, um grupo de 28 pessoas decidiu fugir a pé levando apenas o que conseguia carregar. Homens e mulheres, velhos e crianças se embrenharam pelas trilhas da mata. O jovem Jhon não conseguia acompanhar o ritmo da caminhada e se deixou ficar um pouco para trás. Então viu uma bica d'água e resolveu se refrescar e descansar um pouco. Percebendo que o grupo começava a se distanciar, ele tentou correr, ouviu a explosão e caiu no chão. Por um tempo, não entendeu o que havia acontecido. Mas quando quis levantar, viu que seu pé esquerdo estava destroçado. Sentiu uma dor lascinante, mas não o suficiente para desmaiar. Os companheiros de jornada voltaram com o barulho e o encontraram rastejando e gritando. Os adultos se revezaram para carregá-lo por mais um dia e uma noite antes de chegarem à cidade mais próxima. Somente quando deu entrada no hospital o corajoso menino de 13 anos se permitiu desfalecer. E acordou dois dias depois, já com a perna amputada. Menos sorte tiveram dois outros fugitivos do grupo, que morreram também vitimados por minas terrestres escondidas nas picadas.
Não pense que Jhon é um camponês cambojano que fugia do Khmer Vermelho no começo dos anos 70 e tropeçou em uma mina terrestre, norte-americana ou comunista, plantada no solo em um conflito que ultrapassou as fronteiras do Vietnã e atingiu toda a Indochina. Ou que ele habita alguma selva africana visitada por celebridades como a Princesa Diana ou a ex-senhora McCartney, Heather Mills, distribuindo beijos e pedindo doações para os mutilados por esses covardes armamentos.
Freddy Mendoza era um típico pastorzinho das montanhas. Numa manhã de sol, como quase todas em sua região, ele conduzia as poucas ovelhas do pai pelos caminhos áridos à procura de alguma erva verde entre as pedras para alimentá-las. Nisso, viu um objeto semi-enterrado no solo arenoso. Aos 9 anos de idade, a curiosidade pelo brilho do artefato era irresistível. Ele o apanhou e apertou o botão daquilo que pensava ser um rádio. Mas não se ouviu qualquer música. O estrondo ecoou longe e chamou a atenção dos familiares. Eles o encontraram atirado ao chão com o rosto e os braços queimados e cobertos de sangue. Tentaram reanimá-lo, mas parecia ser tarde demais. Os vizinhos vieram consolar a família, limparam o corpo como puderam e o estenderam sobre a mesa do cômodo principal da casa simples para velá-lo. Por quase 16 horas, parentes e amigos choraram a morte do garoto. Mas ainda não era sua hora. Como que por milagre, ele finalmente se mexeu e foi levado às pressas para o hospital. Hoje, quase dez anos depois, cego, sem dois dedos de uma mão e três da outra, sua vida no campo acabou. Ele mora na periferia da capital e se sustenta vendendo balas nos ônibus com a ajuda de uma irmã de 12 anos cuja infância, assim como a dele, se esvai no rastro da tragédia.
O acidente com Freddy não aconteceu em algum esconderijo de Osama Bin Laden próximo ao caminho para Kandahar, onde muletas e próteses caem do céu para as vítimas das minas terrestres. Também não se trata dos desertos do Curdistão, entre o Irã, o Iraque e a Turquia, onde até as tartarugas podem voar. Nem sequer é uma terra de ninguém, disputada por etnias - todas idênticas para nós - na antiga Iugoslávia. Ferney e Mendoza são jovens sul-americanos, nascidos na Colômbia e no Peru, respectivamente. E os encontros com as minas terrestres aconteceram em seus países de origem - no interior do departamento (estado) de Antioquia, no caso de Ferney; e nas montanhas peruanas de Junín, para Mendoza.
O caso de Jhon Ferney, que agora mora em uma favela sem acesso ao teleférico nos arredores de Medellín, é apenas um entre os milhares registrados oficialmente na Colômbia, desde 2005 o país que mais apresenta novas vítimas dessas covardes armadilhas explosivas. De janeiro de 1990 a junho de 2007, segundo o relatório anual Landmine Monitor, da Campanha Internacional de Banimento das Minas Terrestres (ICBL, na sigla em inglês), mais de 9,5 mil pessoas foram vítimas de minas ou explosivos abandonados pelos grupos que lutam na Colômbia. Dessas, quase 80% foram atingidas já neste século, o que demonstra uma cruel tendência: os números continuam crescendo. Só em 2007, de acordo com o Observatório de Minas da Vice-Presidência da República do país, até 1º de outubro já se somavam 680 novos casos, com 149 mortos. São mais de dois acidentes por dia, sem contar com as mortes ocorridas no meio da selva ou em locais isolados que não são registradas oficialmente.
No total, 12 nações nas Américas possuem campos minados e, entre elas, estão Colômbia, Peru, Equador, Chile, Bolívia, Argentina e Venezuela. Isso sem falar em América Central e Caribe.
As minas terrestres são um flagelo no mundo todo. Em 2006 foram reportados acidentes em 68 países - e sete áreas não reconhecidas como nações independentes - em todos os continentes.
É impossível saber quais são os países com maiores campos minados, já que os exércitos e grupos armados não mantêm registros confiáveis. Angola, por sua extensão territorial e décadas de luta pela independência e guerra civil, certamente está entre os primeiros, junto ao Camboja e ao Afeganistão.
Os três países receberam em 2006 um total de US$ 165,3 milhões, destinados ao suporte para atividades antiminas - somente no Afeganistão, sete ONGs nacionais e diversas entidades internacionais como Halo Trust, Danish Demining Group (DDG) e Monitoring, Evaluation and Training Agency (META) atuam na desminagem. Desde 1991, apenas dois anos depois de os mujahedins expulsarem os últimos soldados soviéticos, já foram doados mais de US$ 500 milhões para atividades antiminas no país, que possui uma das mais antigas missões da ONU com esse objetivo. Já o Camboja recebeu metade desses recursos nos últimos 16 anos, sendo que uma mina não é plantada no país desde meados dos anos 70.
Na América Latina, por outro lado, apenas três países aparecem na lista preparada pelo Landmine Monitor com os 30 maiores recebedores de recursos para ações antiminas em 2006: Nicarágua, com US$ 5,72 milhões; Colômbia, com US$ 4,33 milhões; e Chile, US$ 2,33 milhões.
Com tão poucos recursos, um tenso conflito interno sem solução à vista e a informação de que uma mina não detonada fica ativa no solo por até 60 anos, sendo que os grupos armados que lutam na Colômbia usam esses artefatos explosivos mais intensamente há 17 anos, seria fácil prever há alguns anos que o país tomaria rapidamente a ponta do ranking mundial em vítimas de minas, com a possibilidade bastante real de ocupar esse posto por décadas. A menos que alguma outra nação já altamente minada, como Angola, entre novamente em uma guerra civil total. Ou que o presidente do Paquistão, Pervez Musharraf, decida minar todas as fronteiras de seu país e também as áreas estratégicas e militares. Afinal, além dele, somente os governantes de Miamar, Rússia e Nepal admitem que continuam a plantar minas. O governo nepalês declarou no início de outubro de 2007 que está pronto para assinar o Tratado de Ottawa, que completou 10 anos no final do mesmo ano e proíbe totalmente o uso, a fabricação e a comercialização de armadilhas explosivas designadas a ferir ou matar pessoas, as chamadas minas antipessoal - o documento permite o uso de outros tipos de minas, como as antitanque e as detonadas por controle remoto.
Na Colômbia, cientes de que a maior parte dos acidentes com minas acontecem na área rural, começamos nossa investigação por Bogotá e pela entidade que representa a ICBL no país, a Campanha Colombiana Contra Minas (CCCM). Uma das indicações colhidas nos levou a apenas algumas quadras de distância da sede da CCCM, ao Refugio San Bernabé, a casa onde a missionária alemã Lissi Hansen Victoria hospeda vítimas de minas aguardando por tratamento médico na capital. Era 31 de outubro, Día de Brujas, e por causa da crescente influência cultural norte-americana na Colômbia, havia milhares de crianças fantasiadas pelas ruas carregando abóboras de plástico e pedindo balas e doces nas lojas. No refúgio não era diferente. Meninos de 7 a 10 anos com orelhas e focinhos de dálmata pulavam impacientes esperando os adultos que os levariam para uma volta no quarteirão. Os disfarces cobriam bem as cicatrizes nos rostos, mas não escondiam a falta de membros.
Sem o afã pelos doces das crianças menores e com vergonha de sair na rua, o adolescente David Abreu Muñóz se contenta em pintar o cabelo curto de várias cores e chupar um pirulito. Ele conta rapidamente que ajudava o pai a plantar bananas e mandioca na chácara em que vive quando a enxada topou com uma mina, que explodiu arrancando-lhe as duas mãos, furando um olho e prejudicando o outro. Ele estava em Bogotá à espera de um transplante de córnea para não ficar cego. Mesmo contra as ordens de dona Lissi, que não gosta de brincadeiras com bola dentro da casa, e com menos equilíbrio do que antes do acidente, ele não resiste e mostra aos brasileiros sua habilidade nas embaixadinhas.
O escritório da Unicef, única entidade estrangeira, além do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, a prestar auxílio às vítimas de minas na Colômbia, informa que 60% das pessoas atingidas são militares e que 40% das vítimas civis são menores de 18 anos. Em um contexto de conflito é normal que as baixas entre combatentes sejam superiores. Mas também é preciso levar em conta a maior facilidade do exército em registrar os acidentes entre os seus. Precisávamos entrevistar os militares, o que obviamente não seria tarefa fácil. Para fazer as fotos clássicas da placa "Periglo Minas", tivemos de viajar a Popayán, no departamento de Cauca, e enfrentar uma longa burocracia por uma autorização para irmos às montanhas de Munchique, onde haveria um campo minado pelo exército para proteger as torres de comunicação da região. Pegamos uma carona com os ativistas antiminas Diego Vergara e Paulo Lasso para chegar ao local que por duas vezes quase foi tomado pela guerrilha. Depois de duas horas de estrada de terra, o primeiro bloqueio militar. Mais uma hora e meia para a nossa liberação. Mesmo sendo secretário de governo do município de Tambo, onde ficam as torres, o nome de Vergara não estava na autorização e ele ficou retido na estrada esperando a nossa volta. Fizemos as fotos (devidamente checadas na câmera digital pelos militares), mas o tenente José Quintero fez questão de dizer que o campo havia sido desminado. "O sinal é apenas para precaução", garantiu. Por via das dúvidas resolvemos não arriscar um passeio além do arame farpado.
O próximo passo seria ver como as vítimas se organizam em busca de seus direitos. Para isso, nada melhor do que visitar Antioquia, no noroeste colombiano, o departamento que sozinho registrou mais de 1.400 vítimas de minas nos últimos 17 anos, a região com maior incidência de acidentes desse tipo no país.
Da capital Medellín até Cocorná, município de Antioquia, tomamos um ônibus de linha. Não que o seqüestro de coletivos fosse raro, mas passar com um carro particular pela área de ação das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) seria ainda mais arriscado. Na entrada da cidade, exatamente embaixo de um outdoor com os dizeres "Bienvenido a Cocorná", um tanque de combate fazia a proteção da estrada. Em um salão simples a poucos metros do coreto na pracinha central, mais de 20 membros da Associação de Sobreviventes de Minas de Cocorná contavam suas histórias e buscavam apoio mútuo.
Diferente do que se possa imaginar, nem todos eram camponeses desplazados (expulsos de suas terras pelos grupos armados). O presidente da entidade, José Ruiz Velasquez, trabalhava em uma oficina de conserto de eletrodomésticos. Um dia ele recebeu um artefato de metal redondo cujo dono pensava ser um motor elétrico. Ao tentar abrir o objeto, a mina explodiu deixando-o quase cego e arrancando três dedos de sua mão direita. As minas também são armas insidiosas. A que destruiu o pé do menino Aurélio Clavijo, por exemplo, não detonou quando o cachorro da família passou por cima dela nem quando o pai cruzou pela picada no mato. Caprichosa, ela só foi explodir sob o peso mais leve do garoto.
Igualmente trágica é a história de Cláudia Gallego. Ela estava com os pais indo para a cidade na véspera de Natal quando aconteceu o acidente. Ela e a mãe conseguiram arrastar o pai ferido até a estrada, mas ele morreu no hospital. Quem começa a narrar o caso quando já estamos no cemitério é a menina. Mas ela engasga no meio e diz que não pode continuar por causa da tristeza que sente. A mãe começa a chorar e Cláudia tenta consolá-la. Ficar ali por mais tempo seria só sofrimento para todos, mas antes de sairmos perguntamos à assistente social Nancy Marín o que significam as expressões NN Masculino e NN Feminino em tantos túmulos. "É comum encontrarem corpos não identificados na região, muitos já em estado avançado de decomposição, e são sepultados assim." Quantos não seriam também vítimas de minas fora das estatísticas do governo?
De volta à metrópole, em nosso último dia em Bogotá, um capelão ouviu falar de nosso trabalho e conseguiu nos colocar dentro do principal hospital militar do país apenas mostrando a Bíblia e dizendo que levaríamos uma palavra de consolo aos enfermos. Logo na entrada do Batalión de Sanidad, a estátuta de um soldado com um detetor de metais atestava o motivo pelo qual tantos estariam de muleta ou de cadeira de rodas. Novamente, histórias trágicas e muito parecidas entre si. As vítimas eram normalmente recrutas pobres, sem perspectivas de bons empregos, que viam no exército uma das poucas fontes de uma renda, ainda que pequena, estável. Jovens como o soldado Jairo Lopez, que se achava invulnerável e perdeu as duas pernas, amputadas acima do joelho, em uma emboscada na mata. Os oficiais, claro, vinham lá atrás e não sofreram qualquer baixa.
Mandar os jovens corajosos na frente sem qualquer proteção e pouco treinamento não é exclusividade do exército da Colômbia. No Peru, a necessidade estratégica de se impedir os ataques da guerrilha do Sendero Luminoso ao sistema de transmissão de energia elétrica, que provocaram grandes blecautes no país no final dos anos 80, levou a uma decisão insana: minar os entornos das torres de alta tensão. Militarmente até que funcionou, mas o custo em vidas é imenso até hoje. Como o exército não possuía minas para proteger as 1.711 torres no prazo exigido pelo governo, a Polícia Nacional, que cuida da segurança interna no Peru, improvisou dispositivos de disparo automático em milhares de granadas plantadas ao longo das linhas de transmissão que cortam o país. O problema é que as torres necessitam de manutenção constante e cada vez que um técnico precisava subir nelas, era enviada uma equipe mal- treinada, sem vestimenta apropriada (alguns nos disseram que sua única proteção era o crucifixo) e sem apoio médico, para "abrir um caminho" pelo campo minado e depois plantar e reativar as mesmas minas improvisadas.
Esse é um procedimento sem paralelos no mundo. Em qualquer desminagem padrão, seja no Sudão, na Coréia ou em Kosovo, nunca se tenta retirar uma mina do solo e desativá-la. Quando uma mina é encontrada, coloca-se uma carga explosiva ao seu lado para uma detonação controlada e segura. Com o procedimento realizado no Peru, dos 40 policiais da primeira Unidade de Ativação e Desativação de Minas e Explosivos de Autoproteção (UN-DEXA), 32 sofreram "acidentes de trabalho", sendo que cinco morreram. O presidente da Associação de Vítimas e Sobreviventes de Campos Minados (AVISCAM), Carlos Estradas Salinas, é um caso típico. Ele estava em lua-de-mel com a esposa quando soube que os companheiros iriam realizar uma desminagem particularmente perigosa e que precisariam de sua experiência. Dessa vez o crucifixo não ajudou e hoje Salinas está praticamente cego e sem três dedos em uma mão.
Como em qualquer outro país minado no mundo, no entanto, as vítimas peruanas não são somente militares. E é por isso que os exércitos mais modernos já não consideram há muito tempo esses explosivos como armas eficientes de guerra. Felizmente, essa triste realidade, pelo menos no Peru e na América Central, começa a mudar, e com ajuda brasileira. "O Corpo de Engenharia do Exército Brasileiro sempre teve treinamento de desminagem de combate e atua no exterior desde que a Força Expedicionária Brasileira foi enviada para a Itália durante a Segunda Guerra Mundial", conta o tenente-coronel do Exército Brasileiro, Adriano De Paula. Em 1993, a Organização dos Estados Americanos (OEA) convidou diversos países que não se envolveram no conflito nicaraguense para formarem uma missão de desminagem humanitária, destinada a limpar toda a área afetada por minas para o uso civil e não somente abrir caminho para passagem das tropas, como a de combate. De Paula e mais dois oficiais brasileiros participaram dessa primeira missão na Nicarágua. Para dar continuidade aos trabalhos, no ano seguinte foi formada a Missão de Assistência para a Remoção de Minas na América Central (MARMINCA), e em 1995 surgiu a Missão de Assistência para a Remoção de Minas na América do Sul (MARMINAS), ambas sob a égide da OEA e com assistência técnica da Junta Interamericana de Defesa (JID). "Cerca de 50 oficiais do Brasil já passaram por essas missões e atualmente temos seis militares atuando na Nicarágua, Honduras, Costa Rica e Guatemala pela MARMINCA e quatro no Peru e Colômbia pela MARMINAS".
Foi exatamente contando com o apoio internacional que a Polícia Nacional do Peru montou uma nova equipe de desminagem, agora devidamente equipada e treinada, para realizar os trabalhos de limpeza e garantia de segurança nos campos minados em torno das torres de alta tensão. Na América Central, os números de vítimas também vêm caindo consistentemente ao longo dos anos, devido a este trabalho realizado há mais de uma década. Somente na Colômbia não se vê uma luz no fim do túnel.
No Brasil, apesar de sermos signatários de primeira hora do Tratado de Ottawa, somos o estado-parte que retém para treinamento o maior número desses armamentos em todo o mundo, com algo entre 13 e 16 mil minas ativas. A justificativa oficial do exército é que possuímos cerca de 200 unidades militares que podem vir a fazer uso dessas minas e que o treinamento para a desminagem humanitária precisa necessariamente ser feito sob condições reais para ser efetivo. "O problema, além do excesso de minas - Canadá e Áustria, que são muito mais ativos na área, possuem muito menos minas - é que existem discrepâncias nos números", afirma Cristian Wittmann, que faz parte da representação da Campanha Internacional de Banimento das Minas Terrestres no Brasil. "No relatório de 2004, eles afirmavam que tinham 16 mil minas para treinamento, mas no relatório de 2005 afirma-se que em um campo foram destruídas 28.685, em outro que sobram 13.550 e em outro que foram retidas 13 mil." Ou seja, o controle sobre essas armas não é rigoroso.
Em um dos únicos eventos relacionados a minas antipessoal dentro do território brasileiro, a polícia apreendeu oito artefatos com um traficante na favela da Coréia, no Rio de Janeiro, em abril de 2004. As minas modelo NM M-409, de origem belga, eram do mesmo lote 1-35 do qual fazem parte outras 5.497 minas pertencentes ao Exército Brasileiro. O próprio ministro da defesa na época, José Viegas, negou que as minas tivessem sido roubadas dos arsenais do exército, apesar da legislação internacional proibir a venda de partes de um lote de minas para compradores diferentes.
Outro perigo iminente em todo o mundo, e sobre o qual o Brasil tem mantido uma posição no mínimo dúbia, é a questão das bombas e munições cluster. A mídia nacional tem chamado essas armas indevidamente de "bombas de fragmentação". Na verdade, uma bomba cluster não solta "pedaços" de si mesma, mas sim centenas de submunições explosivas que podem ou não detonar em contato com o solo. Quando parte dessas submunições não explodem, elas transformam a área sobre a qual foram lançadas em um campo minado de fato, impedindo o seu uso pelas populações que ali vivem. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o grande bombardeio de munições cluster realizado por Israel sobre o sul do Líbano em 2006. As munições não detonadas na época ainda continuam a fazer novas vítimas.
É por isso que desde novembro de 2006 a comunidade internacional, capitaneada pela Noruega, tenta criar um novo acordo mundial, semelhante ao Tratado de Ottawa, para proibir totalmente o uso dessas armas, que por serem imprecisas e permanecerem por muito tempo ameaçando as populações civis, deveriam ser consideradas contrárias ao Direito Internacional Humanitário. O chamado Processo de Oslo já conseguiu, em uma reunião em fevereiro, 46 assinaturas de países interessados em banir as bombas cluster. Hoje, 81 nações estão prontas para assinar o tratado, mas, diferente do que aconteceu no Processo de Ottawa, o Brasil não faz parte dessa iniciativa. "Aparentemente, existe pelo menos uma empresa brasileira, a Avibrás Aeroespacial SA, que fabrica munição cluster. A Human Rights Watch afirma ainda que a Britanite Indústria Química e a Target Engenharia e Comércio Ltda. não só fabricam como teriam exportado esses armamentos para Irã, Iraque e Arábia Saudita", denuncia Wittmann, que também é o representante da Coalisão Contra as Munições Cluster no Brasil (CMC), ONG que existe desde 2004. "A CMC está tentando uma audiência pública com representantes do Itamaraty e do Ministério da Defesa para que haja um pronunciamento oficial sobre a produção, estoque e transferência desses armamentos em território nacional."
Por razões mercadológicas ou diplomáticas, alguns países como a Alemanha têm entrado com ressalvas técnicas dentro do Processo de Oslo. Nas Américas, por outro lado, Peru e México fazem parte do grupo que trabalha diretamente no texto. O Chile interrompeu a produção de bombas e munições cluster e a Argentina é um dos mais aguerridos pela proibição total. A Colômbia permanece em cima do muro, mas o Canadá, que tinha uma posição um tanto conservadora, já voltou atrás e está aderindo ao processo. Até nos Estados Unidos, que em geral se recusam a assinar tratados limitando armas que possam vir a utilizar, a CMC conseguiu provocar certo constrangimento pelo fato de o país ter vendido as bombas usadas por Israel no Líbano. Enquanto isso, o Brasil havia confirmado presença na reunião continental sobre o tema, ocorrida em maio de 2007 no Peru, mas na hora H deu o cano. Em um novo encontro dos países americanos em setembro na Costa Rica, a representante brasileira deu uma declaração concisa informando que o país não pretende discutir processos de paz, desarmamento e segurança nacional em fóruns fora do contexto da ONU, mesmo sabendo que as Nações Unidas estão entre as entidades multilaterais que mais apóiam o processo. Convenhamos, isso lá é hora de dar uma de joão sem braço?
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