Professor é vaiado em formatura de jornalistas por apontar ataques do governo à imprensa
Fazer jornalismo no Brasil está cada vez mais perigoso. Ensinar como se faz bom jornalismo, também. E os ataques não vêm somente do governo que deveria respeitar a imprensa e as instituições democratas. Vêm também, incrivelmente, de familiares de jovens decididos a fazer jornalismo. Sua primeira batalha, portanto, será dentro de casa: mostrar aos parentes os FATOS e a importância desses fatos serem bem reportados a toda população.
Felipe Boff certamente é um professor querido no curso de Jornalismo da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Não fosse assim, não teria sido convidado para ser o paraninfo da formatura, realizada na sexta-feira (7), em São Leopoldo, Rio Grande do Sul. Boff abriu seu discurso com um fato triste:
A imprensa brasileira vive seus dias mais difíceis desde a ditadura militar. Entre 1964 e 1985, jornalistas foram censurados, perseguidos, presos, torturados e até assassinados, como Vladimir Herzog. Hoje, somos insultados nas redes e nas ruas; perseguidos por milícias virtuais e reais; cerceados e desrespeitados por autoridades que se sentem desobrigadas de prestar contas à sociedade. Todos sabem – mesmo aqueles que não acompanham as notícias – quem é o principal propagador dessa ameaça crescente à liberdade de imprensa. É o mesmo que também considera como inimigos os cientistas, professores, artistas, ambientalistas – como se vê, estamos bem acompanhados.
A plateia, no entanto, não gostou dos fatos. Parentes dos formandos começaram a vaiar e xingar o professor. Aparentemente não compreenderam o que os próprios estudantes traziam escrito na camiseta:
“Não existe democracia sem jornalismo”
Conforme o professor seguia citando fatos, como os ataques com insinuações sexuais contra jornalistas mulheres e os xingamentos a cada pergunta incômoda na palhaçada literal que se tornaram as “coletivas” na frente do Palácio, mais parte da plateia reagia gritando histérica, certamente envergonhando alunos e parentes esclarecidos. Até nisso o discurso do Professor Boff foi preciso:
Esta é a mensagem a ser destacada nesta noite: quando tenta calar e desacreditar a imprensa, o atual presidente da República ameaça não só o jornalismo e os jornalistas. Ameaça a democracia, a arte, a ciência, a educação, a natureza, a liberdade, o pensamento. Ameaça a todos, até aqueles que hoje apenas o aplaudem – estes, que experimentem deixar de bater palma para ver o que acontece.
No final, os seguranças da universidade acharam por bem escoltar o professor para fora do evento, evitando que agressões verbais de fascistas ignorantes pudessem se tornar físicas. A coordenação do Curso de Jornalismo emitiu depois uma nota em solidariedade ao professor. Nós, jornalistas ativistas pelos Direitos Humanos, também nos solidarizamos com o professor e com os agora jornalistas do curso da Unisinos que não compactuam com os fascistas na plateia, por mais que sejam parentes. Ouçamos, TODOS e TODAS a convocação do professor:
Jornalistas, este é o nosso compromisso. Não deixaremos que a tirania nos cale mais uma vez.
Ainda na noite de sábado, o professor escreveu em sua página numa rede social:
Hoje à noite, algumas pessoas pouco afeitas à liberdade de expressão e à democracia tentaram, aos gritos, me impedir de prosseguir com meu discurso de paraninfo na formatura da turma de Jornalismo da Unisinos. A virulência desse ataque – que fez até a instituição colocar seguranças para me acompanharem na saída do auditório – só reforçou a importância do que foi dito. Por isso, compartilho a seguir o discurso, que pôde ser proferido até o fim graças ao apoio de professores, formandos, alunos, ex-alunos e muitos mais.
Confira o discurso completo do Professor Felipe Boff na cerimônia de formatura:
A imprensa brasileira vive seus dias mais difíceis desde a ditadura militar. Entre 1964 e 1985, jornalistas foram censurados, perseguidos, presos, torturados e até assassinados, como Vladimir Herzog. Hoje, somos insultados nas redes e nas ruas; perseguidos por milícias virtuais e reais; cerceados e desrespeitados por autoridades que se sentem desobrigadas de prestar contas à sociedade. Todos sabem – mesmo aqueles que não acompanham as notícias – quem é o principal propagador dessa ameaça crescente à liberdade de imprensa. É o mesmo que também considera como inimigos os cientistas, professores, artistas, ambientalistas – como se vê, estamos bem acompanhados.
No ano passado, segundo levantamento da Federação Nacional dos Jornalistas, o presidente da República atacou a imprensa 116 vezes em postagens nas suas redes sociais, pronunciamentos e entrevistas. Um ataque a cada 3 dias.
Querem exemplos? “É só você fazer cocô dia sim, dia não.” “Você está falando da tua mãe?” “Você tem uma cara de homossexual terrível.” “Pergunta pra tua mãe o comprovante que ela deu para o teu pai.” É dessa forma chula e rasteira que o presidente da República, a maior autoridade do país, costuma responder aos jornalistas. Seus xingamentos tentam desviar a atenção das respostas que ele ainda deve à sociedade. Nos casos citados, explicações sobre o retrocesso da preservação ambiental no país, sobre os depósitos do ex-assessor Fabrício Queiroz na conta da hoje primeira-dama, sobre o esquema da “rachadinha” de salários no gabinete do filho hoje senador, sobre o envolvimento da família presidencial com milicianos.
O presidente das fake news, que bate na imprensa cada vez que ela informa um fato negativo sobre ele e seu governo, é o mesmo que deu 608 declarações falsas ou distorcidas – quase duas por dia – ao longo de 2019. O levantamento é da agência de checagem Aos Fatos. Querem exemplos? “O Brasil é o país que mais preserva o meio ambiente no mundo.” “Leonardo Di Caprio tá dando dinheiro pra tacar fogo na Amazônia.” “O Brasil é o país que menos usa agrotóxicos.” “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira.” “Nunca teve ditadura no Brasil.”
Em 2020, depois de completar um ano de mandato com resultados pífios na economia e desastrosos na educação, na cultura, na saúde e na assistência social, o presidente não serenou. Redobrou os ataques à imprensa. Aplicou o duplo sentido mais tosco à expressão jornalística “furo” para caluniar a repórter que denunciou a manipulação massiva do WhatsApp na campanha eleitoral. Atacou outra jornalista, mentindo descaradamente, para negar a revelação de que compartilhou vídeos insuflando manifestações contra o Congresso e o STF.
E segue promovendo o boicote à imprensa, com exceção daqueles que aproveitam o negócio de ocasião para vender subserviência e silêncios estratégicos. Aos veículos que não se dobram ao seu despotismo, o presidente da República impinge pessoalmente retaliações financeiras diretas, pressão sobre anunciantes e difamação de seus profissionais. Pratica, enfim, toda sorte de manobras sórdidas para tentar asfixiar o jornalismo e alienar a população dos fatos. E já nem se preocupa em disfarçar suas intenções. Querem um último exemplo? Declaração de 6 de janeiro deste ano, dita pelo presidente aos jornalistas “Vocês são uma raça em extinção”.
Não, presidente, não somos uma raça em extinção. Ao contrário. Somos uma raça cada dia mais forte, mais unida, mais corajosa, mais consciente. Basta olhar para estes 21 novos jornalistas que estamos formando hoje. Basta ler os dizeres na camiseta deles: “Não existe democracia sem jornalismo”.
Esta é a mensagem a ser destacada nesta noite: quando tenta calar e desacreditar a imprensa, o atual presidente da República ameaça não só o jornalismo e os jornalistas. Ameaça a democracia, a arte, a ciência, a educação, a natureza, a liberdade, o pensamento. Ameaça a todos, até aqueles que hoje apenas o aplaudem – estes, que experimentem deixar de bater palma para ver o que acontece.
Para encerrar, gostaria de citar o exemplo e as palavras do grande escritor e jornalista argentino Rodolfo Walsh. Precursor da reportagem literária e investigativa e destemida voz contra o autoritarismo e o terrorismo de Estado, Walsh pregava que “Ou o jornalismo é livre, ou é uma farsa, sem meios-termos”. Dizia também que “um intelectual que não compreende o que acontece no seu tempo e no seu país é uma contradição ambulante; e aquele que compreende e não age, terá lugar na antologia do pranto, não na história viva de sua terra”.
Rodolfo Walsh foi sequestrado e assassinado pela ditadura argentina em 25 de março de 1977. Na véspera, publicara corajosamente uma “carta aberta à junta militar”, denunciando os crimes do sanguinário regime, que então completava apenas seu primeiro ano. Estas foram as últimas palavras que Walsh escreveu: “Sem esperança de ser escutado, com a certeza de ser perseguido, mas fiel ao compromisso que assumi, há muito tempo, de dar testemunho em momentos difíceis”.
Jornalistas, este é o nosso compromisso. Não deixaremos que a tirania nos cale mais uma vez.
Confira a nota da Coordenação do Curso de Jornalismo da Unisinos:
Declaração de apoio e solidariedade ao professor e jornalista Felipe Boff
Na noite de 7 de março, sábado, na cerimônia de formatura do curso de Jornalismo da Unisinos em São Leopoldo, pessoas da plateia, aos gritos e vaias, tentaram impedir o paraninfo, professor Felipe Boff, de prosseguir seu discurso. A virulência desse ataque foi tão grande que a instituição teve que colocar seguranças para o acompanharem na saída do auditório.
Em sua fala corajosa e necessária, principalmente na ocasião em que jovens colegas chegam ao mercado de trabalho, Felipe, embasado em dados e exemplos, alertava para o que deveria ser óbvio: o presidente da República vem constantemente ofendendo e destratando jornalistas. “No ano passado, segundo levantamento da Federação Nacional dos Jornalistas, o presidente da República atacou a imprensa 116 vezes em postagens nas suas redes sociais, pronunciamentos e entrevistas. Um ataque a cada três dias”, destacou o professor.
Como também salientou o paraninfo, o atual presidente da República vem ameaçando não só o jornalismo: “Ameaça a democracia, a arte, a ciência, a educação, a natureza, a liberdade, o pensamento. Ameaça a todos, até aqueles que hoje apenas o aplaudem”. Esses que na formatura tentaram calar um jornalista por dizer o que é fato não enxergam que estão abrindo mão de um direito básico e constitucional de todos os cidadãos brasileiros: o de serem informados. Não existe democracia sem jornalismo livre. Jornalistas já foram censurados, perseguidos, presos, torturados e até assassinados durante o período de ditadura militar no Brasil, como também lembrou Felipe.
Mas não nos deixaremos intimidar com ameaças. Por isso, nós, jornalistas, professores e professoras de jornalismo abaixo assinados, declaramos total apoio e solidariedade ao professor e jornalista Felipe Boff, que conseguiu, em sua fala verdadeira, representar a todos e todas nós neste momento tão difícil que o país atravessa.. Também por nossos alunos e alunas, temos o dever de dizer: cada ataque nos tornará mais fortes. Por fim, reafirmamos o que o professor Felipe disse no encerramento de sua fala: “Não deixaremos que a tirania nos cale mais uma vez”.
Porto Alegre, 8 de março de 2020.
Micael Vier Behs
Coordenador Jornalismo São Leopoldo Coordenador Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades, Artes e Tecnologias
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